26 December 2006

Inquisição


"A Santa Sé reúne, entre amanhã e sábado, um conjunto de especialistas internacionais para avaliar a possibilidade de aceitar o uso do preservativo pelos casais em situações limite.....O objectivo deste encontro de três dias é o de elaborar um documento que sustente uma decisão do Papa no sentido de permitir aos casais católicos a utilização do preservativo em casos muito particulares e limitados…."

Estava eu pela manhã a tentar perceber o que de novo acontecia pelo mundo, quando me salta aos olhos este artigo, da edição online do expresso. Convenhamos que é um grande choque para se levar logo pela manhã.
Primeiro - não por ser a razão mais importante mas por ser a primeira a saltar da minha mente - pela redação que é feita. É incrivel, que nos dias de hoje, alguem ainda escreva que o papa pode vir a permitir. No dicionário, permitir é consentir, autorizar. Mas o que é que a pessoa que escreve o texto pensa que o papa é, para que tenha o divino poder de interferir no que os casais fazem ou não na liberdade da sua vida privada? Que ideia aterradora!
Depois é o voltar a um tema caro a esta opressora instituição que dá pelo nome de igreja. Esta é a organização que mais influência tem tido na criação e evolução da sociedade, nos ultimos séculos. Muitos dos atrasos, das ideias retrogadas e pré concebidas, das amarras que prendem e das velas que não iluminam, podem e devem ser agradecidos à igreja.
Se ainda hoje a mulher, continua a ser colocada num plano estupidamente inferior, entre dois sexos que são em tudo iguais, é à igreja que devemos agradecer.
Se a Humanidade vive anos a fio com o medo de se poder expressar e pensar livremente, em muito à igreja devemos agradecer.
Se os Homens vivem anos a fio com medo do prazer, do gozo, da fruição, da felicidade, é à igreja que devemos agradecer.
Se a Humanidade vive anos na sombra negra do pecado, da vida tristre e sofrida, sem ponta de chama, de atitude, de alegria, de criatividade, é à igreja que em muito devemos agradecer.
Se a unidade e a riqueza individual da pessoa humana é subjugada à criação de uma massa amorfa e obediente de gente sem ideias, nem valores próprios que não os que lhe são impostos, em muito o devemos à igreja.
Se a liberdade de pensar, de inovar, de criar, de fazer evoluir, não é permitida e sempre acaba reconhecida num tempo que já não é o seu, em muito o devemos à igreja.
Se a nossa sociedade passa a vida a marginalizar e a menorizar partes que são componentes do seu todo, só por serem diferentes e minoritárias, em muito o devemos à igreja.
Se a sociedade de hoje tem muitos defeitos e atrasos, em muito o devemos à igreja.
Como é obvio o mundo não é uma composição maniqueista onde de um lado está o mal e do outro o bem. Nem tudo o que de mal existe na nossa sociedade é culpa da igreja, mas que ela, enquanto arquitecta mestra das suas fundações, tem concerteza muitas responsabilidades nas suas imperfeições, disso não tenho dúvidas.
O Homem precisa de se libertar dos seus medos, que as religiões tão bem têm sabido explorar ao longo do tempo. Só dessa forma ele será capaz de se tornar totalmente livre e construir um mundo novo, que terá decerto muitos defeitos, mas que será concerteza mais rico, mais plural, mais denso, mais tolerante, mais feliz. Em suma mais livre.
Nos tempos que se dizem modernos, a igreja continua a escravizar o corpo de muitos Homens e a condenar à pena de morte o livre pensamento que deles nasce. Tudo porque continuamos a ter medo que um dia o céu nos caia em cima.

Tesouro


Embora a embalagem não o deixe adivinhar, não passo de uma criança em ponto grande. Uma criança que chora! Uma criança que grita! Uma criança que adora que lhe façam as vontades. Que a mimem. Uma criança que vive no seu mundo. Um mundo em que as semelhanças com o real, não passam de pura ficção.
Como todas as crianças, tenho as minhas fantasias. A fantasia de encontrar um cofre no final do arco iris. A fantasia de encontrar um tesouro, numa ilha deserta, debaixo de uma palmeira, indicado por um velho mapa de pele de antílope, que segui ponto por ponto, ao leme de um barco pirata.
Sonho com o encontrar do tesouro. Com a emoção de o abrir. Com a surpresa de o descobrir. Com o prazer de o fruir.
Na busca do tesouro, passo anos a seguir pistas. Dias a decifrar códigos. Meses a ler mapas. Mapas cheios de pistas erradas. Mapas com promessas de tesouros valiosos nunca antes vistos. Promessas nunca cumpridas. Tesouros que são mais imaginação que os meus sonhos.
Se o meu sonho de criança é encontrar o meu tesouro, essa busca incessante, mas frustrada, vai corroendo o mesmo. A cada pista errada. A cada viagem perdida. A cada buraco escavado. A cada bau vazio.
O sonho azul em cenários de praias de areia fina e àguas limpidas, vai ganhando contornos de negra tempestade carregada de nuvens a transbordar de pingos grossos de àgua gelada. As paisagens claras vão aos poucos perdendo a sua côr. Vou deixando de viver no sonho.
Começo a acreditar que o sonho não passa de um sonho. Que a realidade é que é realidade. O fim do sonho começa a ser o fim da criança. Como pode sobreviver uma criança sem um sonho. O sonho é o alimento que lhe dá vida, que nutre a sua existência. E a criança está moribunda, desnutrida, na falta do sonho que a devia alimentar.
Quando tudo parecia terminado. Quando estava escrita a morte da criança e o fim do sonho, eis que algo acontece.
A vontade manteve a criança ligada à vida, mesmo sem alimento. Quando nada procurei um tesouro apareceu. O tesouro ressuscitou o sonho. O sonho alimentou a criança e a criança voltou à vida.

Amnésia


Algures no ano de 2000, durante o reinado de el rei antónio guterres, foi anunciado a todo o reino que se tinha preparado uma milagrosa reforma, que iria salvar a nossa segurança social durante os próximos 100 anos. Os mensageiros da altura, como o sr josé socrates davam vivas pelo reino por este magnífico acontecimento. Todos nós, que não estivessemos a pensar viver mais do que cem anos, já não teriamos de nos preocupar com a nossa reforma. Esta estava mais do que garantida! Os grandes arquitectos de tão fabulosa reforma eram os ilustres cavaleiros ferro rodrigues, paulo pedroso e um prometedor aspirante - vieira da silva. O reino respirava alegria e orgulho neste grupo de senhores que com a sua sabedoria tinham salvo o nosso futuro.
Eis se não quando, no ano de 2006, é verdade, foram só seis anos, não é gafe de escrita nem eu envelheci 100 anos, uma nuvem negra paira sobre o reino. O grande profeta sócrates adivinha que o fim da segurança social está próximo e espalha pelo reino que ele e um valoroso cavaleiro de nome vieira da silva iam salvá-la. Eles iriam produzir uma reforma que garantiria o futuro da nossa segurança social.

Se todo este assunto não fosse tão sério, eu penso que daria um belo argumento para um episódio dos monthy piton. A questão é que não estamos a falar de uma serie de tv, é a realidade, e a nossa realidade. O nosso futuro! Como é que o nosso pais pode permitir que uma série de senhores que demonstraram já a sua incompetência, ao realizar uma reforma que duraria 100 anos mas que na prática durou seis, venham de novo perante nós apresentar o que quer que seja. Em qualquer empresa ou organização minimamente credivel, estes senhores teriam vergonha e nem sequer ousariam dizer o que quer que seja. E se tentassem, o mais que lhes poderia acontecer era um despedimento com justa causa. No nosso país não. Dá-lhes o direito a criticar a porcaria que fizeram como se nada tivesse que ver com eles e ainda anunciar novas soluções, provavelmente tão boas como a anterior.
Não nos podemos tornar num povo amnésico que permite tudo à sua classe politica. A exigência que temos para com eles será a mesma que eles vão ter para com a sua actividade. Quanto maior a exigência maior o respeito que vão ter para connosco e para com a sua classe. É urgente que isso se faça, para afastar de cargos de responsabilidade pessoas que são puramente incompetentes e que não teriam lugar em qualquer organização onde a palavra exigência fosse utilizada.
Basta ver que nem um único partido foi capaz de apresentar contas correctas da última campanha eleitoral. O PS e o sr vitalino canas - um dos que elaborou essa mesma lei que ninguém consegue cumprir - veio desculpar-se dizendo que esta era muito exigente e dificil. Cá está a prova da elevada capacidade destes senhores.

A Fábrica


O sol já fraco em fim de dia iluminava as águas serenas de um mar já cansado de verão. A praia estava quase deserta, muda, silenciosa. Tão silenciosa que se conseguia ouvir ao fundo o eco dos meus pensamentos. Caminhava lento pela água. Calças de ganga puxadas acima. Ténis numa mão, gelado na outra. Caminhava eu sem destino aparente, quando lá ao fundo, junto à falésia, o meu olhar é atraido por um vulto iluminado pelos últimos raios do dia. O rosto era belo e sorria para mim. O meu corpo, encantado pelo olhar da sereia, ganha vontade própria e segue a rota do encantamento. Estou cada vez mais próximo. Não sei que força é aquela que me atrai, mas deixo o meu corpo seguir. O rosto inspirava paz no meu espirito e irradiava uma beleza quente que aconchegava a minha alma.

ACORDA, JÁ ESTÁS ATRASADO! O teu irmão já tomou o pequeno almoço e tu ainda na cama. Queres faltar de novo às aulas seu irresponsável!

Os gritos eram da minha mãe! Entrara com tudo pelo quarto em direcção à minha janela ainda fechada. Que timing perfeito o dela! Como sempre aliás. Agora que eu estava mesmo no ponto em que ia estabelecer contacto com aquela imagem tão prometedora, lá estava ela para acabar com tudo. Mais um sonho destruído pela força devastadora de uma mãe perdida na função.
Já estava cansado! Durante anos a fio tentava passar a minha mensagem. Do que era importante para mim. Do que me fazia feliz. De quais eram as minhas pequenas ambições ou os meus grandes desafios. Mas nada dessa mensagem passava. A família hoje não passa de uma pequena fábrica. Uma unidade de produção. Um homem e uma mulher que criam uma sociedade anónima, e consoante o capital disponivel arranjam umas instalações para a sua unidade fabril. Como a tecnologia está cada vez mais cara e os portugueses têm a fama de ser pouco produtivos, essas fábricas produzem cada vez menos unidades. Algumas conseguem dois como a fábrica dos meus pais, mas a maioria só um.
E lá andam eles numa correria louca, dentro de uma fábrica poluída de ideias pré concebidas. O ruido das máquinas emissoras de opiniões e regras é tal, que já nada conseguem ouvir. Os apertos diários com as inumeras contas de fornecedores são de tal forma intensos que não lhe deixam espaço livre para pensar. O ritmo industrial é tão forte que não lhes deixa tempo livre nem força para usufruir de algo para além das obrigações do trabalho diário na fábrica.
São trabalhadores tristes e cansados. Enganados e escravizados pela ideia de serem patrões de uma fábrica, que afinal os explora mais que ao mais fraco dos empregados.

A humanidade entrou num negócio que parecia tão lucrativo. Uma oportunidade única de investimento. Para atingir-mos todos os nossos sonhos de liberdade, de riqueza, de propriedade, só teriamos de dar em troca a nossa capacidade de amar, de pensar, de sonhar. Só teriamos de deixar de ser únicos. Só teriamos de deixar de ser humanos, para passarmos a ser máquinas.

Vagabundo


A ampla janela da sala de estar, deixava que toda a cidade entrasse pela casa, mesmo sem que para isso tivesse sido convidada. O fernesim mudo de pessoas andando pelas ruas conferia movimento ao local vazio de gente. João olhava no horizonte e via um sol moribundo que minuto após minuto desfalecia, terminando o seu reinado. Rei morto Rei posto. Não tardaria muito que o seu sucessor, a lua, ocupasse o trono do reino das trevas. A noite chegava e preparava para se instalar com todo o seu negro mistério, com a cegueira da escuridão, o sofrimento da ignorância. A noite sempre despertou uma dualidade de sentidos. Associada ao lado negro e mau, sempre nos trás à ideia lembranças boas de noitadas e aventuras. Na noite o ser humano sente-se longe dos holofotes que o controlam e liberta-se das amarras que durante o dia o prendem a margens nem sempre escolhidas.
Talvez por isso a chegada da noite começa a inundar João de pensamentos até ai desconhecidos, censurados durante o reinado do rei sol, mas que vêm a luz do dia com a chegada da noite. Ele estava só. Fazia mais de duas semanas que não satisfazia os seus mais profundos desejos carnais. Desde que terminara a última relação com a sua secretária, uma loura platinada que tinha tanto de bela como de plástica, mas que na cama o tinha conseguido transportar a locais nunca antes visitados, não mais esses desejos tinham sido satisfeitos. Desde esse dia, já passaram mais de seis meses, que ele ansiava por voltar aqueles locais paradisíacos, mas não encontrava o meio que o transportasse até lá. Já vagueara pelas ruas, as reais e as virtuais, qual vagabundo errante em busca de algo tão precioso quanto dificíl de encontrar. Dificíl de encontrar não o fim, que esse em si era do mais fácil de conseguir. Dificil era de encontrar era aquele meio certo, por não saber exactamente o que era e onde estava.
João sentia um vazio enorme. Todos os dias e em todos os locais ecoava a palavra amor. Canções na radio, artigos nos jornais, argumentos de cinema e televisão. O amor andava na boca de todos, como algo de tão trivial e simples que fazia parte da vida de todos. E ele nunca o tinha encontrado. Não sabia o que era. Não sabia onde estava. Não sabia sequer como o encontrar. O máximo que até hoje conseguira fora o satisfazer carnal que a secretária lhe tinha proporcionado. Mas essa satisfação fazia-lhe lembrar as suas esporádicas idas ao macdonalds. Comia um big tasty e ficava completamente saciado, mas bastava passarem poucos momentos para voltar a ficar com fome. Aquela comida tinha um curto efeito. O sexo sem mais para ele tinha um curto efeito, satisfazia a necessidade momentânea mas a fome voltaria logo a seguir ainda com mais força.
Será que o sexo era incompativel com o amor? Deveria ele procurar primeiro o sexo e depois juntar-lhe o amor? Ou antes pelo contrário deveria primeiro procurar um sentimento forte como o do amor e só mais tarde lhe juntar a componente fisica. Infelizmente por muito que nisso tivesse meditado a resposta não lhe tinha ainda surgido. Porque razão para tudo na vida existem manuais e para esta situação em concreto não existe nada. Eventualmente numa daquelas prateleiras de supermercado existirá uma edição de uma qualquer americana psicopata a descrever as 10 etapas para atingir o amor. Ou de certeza que se fosse ao quisoque à entrada do prédio uma daquelas revistas cor de rosa teria nas paginas centrais um artigo com todos os conselhos para atingir o amor. Mas isso não é um manual. Uma coisa séria e com rigor cientifico publicado por uma qualquer universidade.
Enquanto estas interrogações se avolumavam na sua cabeça, um volume maior surgia por dentro das calças de ganga já de si justas. O desejo era cada vez mais forte. A vontade era cada vez mais incontrolável. Nesta noite ele tinha que apagar aquele fogo que desde há alguns dias o consumia. Enquanto aquecia no microondas a comida pronta que comprara na loja ao lado do trabalho, ligou o computador e entrou num dos muitos locais de procura fácil de satisfações mútuas, que conhecia. Logo ali começava o jogo, que ele tão bem aprendera a disputar, do tens que idd e como és. Ele ainda era jovem e até bem apresentado, por isso presas era o que não lhe faltavam. Logo ali angariou duas ou três propostas de encontros nocturnos, que terminariam certamente numa qualquer nave espacial em forma de cama. Comeu de forma rápida o esparguete com lombo mal aquecido, e desceu à garagem para se dirigir ate um bar da moda no centro da cidade. Lá estava à espera o seu encontro. Entre dois martinis ambos tentaram mostrar que não eram um qualquer hamburguer vendido numa estação de serviço mas sim uma sofisticada receita francesa de nouvelle cousine. Invariavelmente o resultado foi o mesmo. No dia seguinte nem se lembrava o nome do hamburguer que tinha comido, mas a fome que lhe voltara, essa ele conhecia bem. Ainda não fora nessa noite que encontrara o bem tão precioso que lhe faltava. Ainda não era esse o dia que ele comecaria sem a incómoda sensação de fome que sempre o acompanhara. Será que algum dia ele sentiria a sensação de estar saciado.

Baile de Máscaras


O velho e ferrugento relógio de ponto, marcava vagaroso, o compasso dos segundos passados na cave a que pomposamente chamavam de escritório. A tarde arrastava-se lenta e penosa. O calor era forte! A motivação era fraca!
Nem sequer a ideia de terminar o dia, era suficientemente agradável para criar vontade de estar. Penosamente, justificava a sua presença naquele sitio com mil e uma tarefas vazias de conteúdo e de sentido. Era somente mais um dia! Era somente mais uma semana que ia terminar! Mais uma! Tão sem sentido como todas as que passaram e como tantas outras que hão-de vir. Tão sem sentido, que nem mereciam ser marcadas nas paredes sujas, do pomposo escritório, qual prisioneiro na masmorra ansiando o dia da liberdade. Ele estava tão preso ali, como estaria preso na liberdade que se seguíria.
Por cima do ombro fixa o relógio - "mais cinco minutos e estou livre" - livre de voltar para a sua segunda prisão acrescentaria eu.
O relógio assinala as seis. Ele no entanto não quer dar a conhecer ao mundo a inutilidade de mais este dia. Avança então frenético pelo escritório. Imagina um número infindavel de tarefas inadiáveis que tenta a todo o custo terminar antes de sair. O compasso é rapido, porque tem de parecer que está ali contra vontade. Que está ali só por censo do dever, porque lá fora um turbilhão de emoções o aguarda.
A verdade é que a ele nada o espera. Mas de que importa isso, se só ele o sabe.
O que verdadeiramente importa é a imagem que os habitantes daquele seu mundo, o trabalho, levam dele.
Deixa a secretária desarumada e ruma até a porta de saida. Apaga a luz. Fecha a porta. Encerra por dois dias aquele mundo.
Segue pela rua estreita, acendendo o ultimo cigarro de um maço amarrotado no bolso do casaco. O sol está forte e queima a pele branca, de quem não assenta pés numa praia desde um qualquer verão em que um qualquer amigo o veio arrancar do casulo de sua casa. Chega ao carro e começam as tentativas de abrir, com a chave, uma fechadura mais que forçada por sei lá quantas tentativas de assalto. Até lhe custava a querer que um carro daqueles despertasse alguma vez o desejo de posse. Mas no bairro em que morava tudo despertava o desejo de posse. Até a feia vizinha do andar em frente, com um ar pouco lavado e uma saliente verruga no queixo, despertava desejo em tantos habitantes do bairro. Dificil de explicar. A necessidade talvez o explique. Ou talvez desculpe, a falta de gosto, de ambição, a mediocridade.
A viagem ate casa arrasta-se como o resto do dia, nas filas infernais de carros que serpenteiam lentamente como répteis metálicos pelo asfalto urbano. Milhares de criaturas aguardam pelo glorioso momento da chegada ao seu habitat. João vai queimando cigarros com a mesma força que os raios de sol queimam a já pouco metalizada pintura azul do seu punto.
Ao contrário do que se passa em muitos dos outros módulos que compõem aquela enorme massa metálica, ali não existe ansiedade pelo jantar que tem de estar pronto. Pela roupa que se tem de estender. Pelos miudos que se tem de deitar. Pela novela que não se pode perder.
João sabe que em casa nada o espera. Dentro das paredes já amareladas pelo tabaco, só o velho companheiro de jornada o aguarda. O seu velho gato persa. E para esse o tempo já passou para além do que devia. Outrora fora uma das poucas razões para alguma animação na sua casa. Hoje já nem se apercebia da sua entrada, de tal modo estava surdo e cego, agarrado à vida por um fio tão fino e desgastado que ameaçava romper a qualquer momento. Nem conseguia imaginar quando ele quebrasse e lhe levasse a sua única companhia. Nem ele seria capaz de arranjar qualquer outro animal para casa. A ligação ao seu fiel, hoje velho companheiro, era de tal modo forte que sentiria ser uma enorme traição permitir que alguem pudesse sequer ocupar o seu lugar.
Este nobre pensamento era intercalado por outros bem mais triviais, como se teria algo no frigorifico para poder preparar um jantar, ou que filme passaria hoje, num dos quatro canais de televisão a que tinha acesso, e que se constituiria no ponto alto da noite.
Que grande programa de fim de semana. No dia seguinte deixar-se-ia vegetar na cama até horas impróprias de poder dizer bom dia. Comeria uma taça de corn flakes com leite magro, junto com uma maçã de pele encarquilhada que foi resistindo durante a semana, na pequena fruteira de vidro colocada na minuscula mesa branca que enfeita a cozinha. De seguida vestiria o fato de treino de sempre, e com a barba por fazer seguiria a multidão, até uma qualquer grande meca de consumo, para abastecer dos mantimentos necessários, o seu refugio de todos os dias.
No percurso por entre os longos escaparates, repletos de latas de conserva todas elas seladas há meses mas garantindo ter dentro de si legumes tão frescos, como se tivessem sido colhidos nesse dia por um pequeno agricultor de provincia, duas vizinhas cruzam o seu caminho. Ambas passam a vida no café em frente ao prédio, uma delas está desempregada desde o dia em que pensou trabalhar e a outra foi reformada por já não se enquadrar na fotografia cheia de jovens bonitas e dinâmicas da sua ultima empresa. Ambas ocupavam grande parte do seu dia a criticar a vizinha da verruga e as suas escapadinhas carnais. Seria talvez o sinal da inveja. A outra era feia mas mesmo assim conseguia fazer aquilo que elas, embora até jeitosas, não tinham a coragem de fazer. De fazer ou de assumir. Que o que se faz dentro de quatro paredes, só pode ser sabido, se o contar quem dentro das quatro paredes esteve. A desempregada comenta a barba por fazer e a forma descuidada como saira envergando um fato de treino tão velho. Um vizinho tão distinto e bem sucedido como o do quinto andar, não deveria andar nestes propósitos em público. Um rapaz tão culto e com tantas responsabilidades. Ouvi dizer que é um autentico génio, trabalha numa grande empresa multinacional que sem ele não funcionaria, foi o que me disse o toino do talho. O bom senso da reformada logo veio ao de cima. É mesmo assim Albertina. Estes grandes senhores não são nada ligados a esses pequenos pormenores, eles ligam é as grandes coisas da vida. Só assim chegam a posições como as que ele tem. E o ar negligente de vestir e de se apresentar é normal. Quem todos os dias da semana é obrigado a estar sempre aprumado e de fato e gravata, não perde uma oportunidade de se livrar dessas amarras e tentar parecer tão normal como qualquer um de nós.
Para qualquer pessoa que aqui está, ele parece mais um pobre infeliz ás compras no centro, mas nós que o conhecemos, sabemos que ele não é nada disso.

Palavras Presas em Folhas Soltas


Hoje apeteceu-me escrever.
Estava com vontade de acrescentar algo mais.
À vontade associou-se o dilema. Vou escrever sobre o que? Agora consigo perceber de que falam aqueles cronistas profissionais que ganham a vida a encher folhas soltas de palavras presas e sem sentido. Todos eles falam da angustia do papel em branco. Ter um texto para entregar numa determinada data para um jornal ou revista e não ter nada sobre o que escrever. Acabam a discorrer sobre um qualquer assunto corriqueiro e sem sentido, libertando opiniões que ninguem quer saber sobre assuntos que para ninguem tem interesse. O que interessa é ter as 50 linhas e as 350 palavras sem contar com espaços, para assim ver debitado na conta o valor semanal da avença pelas suas iluminadas ideias.
Alguns até eram capazes de escrever sobre o não ter nada que escrever. Que idiota. Idiota? Realmente o ser humano tem uma enorme capacidade de criticar os outros sem olhar para o que faz. Então não é que eu estou há não sei quantas linhas a escrever sobre o não ter nada para escrever e ainda sou capaz de chamar idiota a quem o faz. Ainda bem que fui a tempo de perceber o erro e emendar a opinião. Pelo menos assim posso passar por um idiota, mas um idiota com sentido da realidade.
Será que o não ter nada para escrever significa que eu não tenho nada para dizer?
Tenho quase a certeza que não! Estou é entupido. É tanto a pressão de palavras a querer jorrar que a torneira não tem largura para as fazer sair. Acumulam-se. Forma-se um balão!
Podia escrever tantas coisas sobre o passado. Mas porque falar do passado. Já passou! E eu não tenho idade nem posição social para fazer uma biografia. Biografias só deviam ser escritas por pessoas com mais de 70 anos ou com menos de um mês de vida. Que eu saiba, apesar dos dias que escorrem na ampulheta que determina a minha idade, passarem cada vez mais rápido e formarem uma massa cada vez mais volumosa, ainda não reuno as condições citadas.
Escrever sobre o presente é dificil. Não é suficientemente passado para já não existir. Não é suficientemente futuro para ser sonhado e desejado. É presente! E dele não criamos ainda o distanciamento suficiente para escrever sobre ele. Está entranhado na nossa pele descalibrando o nosso tacto. O seu odor ainda impregna o nosso olfacto. A sua imagem ainda ofusca a nossa visão. O seu ruido impede a audição. Sem sentidos validos só nos podemos guiar pela intuição. Pelo coração. Pelo sentimento. Com meios tão enganadoras para formar opiniões, é preferivel não discorrer sobre elas e esperar que passem a fazer parte do passado. O futuro só pode ser desejado. E sobre os meus desejos não quero falar. São meus e não posso partilhar. Sendo assim não se pode escrever sobre nada. E sobre o nada se escreve um texto. E sobre o nada se prendem palavras a uma folha solta.

Fábulas Coloridas


Por norma todas as fábulas começam por era uma vez......Bolas! A minha com aquilo que escrevi já não começa.
Agora já não há nada a fazer. Tanto trabalho a planear o que ia escrever e começou logo mal.
Bem vistas as coisas que importa. Esta é a minha fábula. Logo, só tem de começar como bem me apetecer!
Até porque se é suposto ser uma fábula que fala da minha vida, até é bastante normal que não comece de forma normal. Nela as coisas nunca começam como é suposto, não evoluem como é normal, e acabam sempre de forma imprevisível.
Ainda bem. Nada pior que um filme americano com happy end, ou uma novela brasileira que ao segundo episódio já se adivinha o final. Ao contrário do que seria de imaginar é essa imprevisibilidade que lhe dá gosto. É essa diferença que a torna única.
E é minha! Única, Imprevisivel e Difícil, tal e qual como eu gosto. Tal e qual como eu quero. Tal e qual como eu a imagino. Tal e qual como eu a quero viver. De que valeria acordar de manhã, se já se soubesse o que vem a seguir. De que valeria ir dormir sabendo como se vai acordar.
O desafio é o que salpica de colorido uma vida pintada a preto e branco. São essas cores que lhe dão a vida e que trazem a felicidade. A felicidade plena que se procura e que nunca se encontra.
A felicidade são pequenos borrões de tinta. São pequenas fábulas coloridas.