26 December 2006

Baile de Máscaras


O velho e ferrugento relógio de ponto, marcava vagaroso, o compasso dos segundos passados na cave a que pomposamente chamavam de escritório. A tarde arrastava-se lenta e penosa. O calor era forte! A motivação era fraca!
Nem sequer a ideia de terminar o dia, era suficientemente agradável para criar vontade de estar. Penosamente, justificava a sua presença naquele sitio com mil e uma tarefas vazias de conteúdo e de sentido. Era somente mais um dia! Era somente mais uma semana que ia terminar! Mais uma! Tão sem sentido como todas as que passaram e como tantas outras que hão-de vir. Tão sem sentido, que nem mereciam ser marcadas nas paredes sujas, do pomposo escritório, qual prisioneiro na masmorra ansiando o dia da liberdade. Ele estava tão preso ali, como estaria preso na liberdade que se seguíria.
Por cima do ombro fixa o relógio - "mais cinco minutos e estou livre" - livre de voltar para a sua segunda prisão acrescentaria eu.
O relógio assinala as seis. Ele no entanto não quer dar a conhecer ao mundo a inutilidade de mais este dia. Avança então frenético pelo escritório. Imagina um número infindavel de tarefas inadiáveis que tenta a todo o custo terminar antes de sair. O compasso é rapido, porque tem de parecer que está ali contra vontade. Que está ali só por censo do dever, porque lá fora um turbilhão de emoções o aguarda.
A verdade é que a ele nada o espera. Mas de que importa isso, se só ele o sabe.
O que verdadeiramente importa é a imagem que os habitantes daquele seu mundo, o trabalho, levam dele.
Deixa a secretária desarumada e ruma até a porta de saida. Apaga a luz. Fecha a porta. Encerra por dois dias aquele mundo.
Segue pela rua estreita, acendendo o ultimo cigarro de um maço amarrotado no bolso do casaco. O sol está forte e queima a pele branca, de quem não assenta pés numa praia desde um qualquer verão em que um qualquer amigo o veio arrancar do casulo de sua casa. Chega ao carro e começam as tentativas de abrir, com a chave, uma fechadura mais que forçada por sei lá quantas tentativas de assalto. Até lhe custava a querer que um carro daqueles despertasse alguma vez o desejo de posse. Mas no bairro em que morava tudo despertava o desejo de posse. Até a feia vizinha do andar em frente, com um ar pouco lavado e uma saliente verruga no queixo, despertava desejo em tantos habitantes do bairro. Dificil de explicar. A necessidade talvez o explique. Ou talvez desculpe, a falta de gosto, de ambição, a mediocridade.
A viagem ate casa arrasta-se como o resto do dia, nas filas infernais de carros que serpenteiam lentamente como répteis metálicos pelo asfalto urbano. Milhares de criaturas aguardam pelo glorioso momento da chegada ao seu habitat. João vai queimando cigarros com a mesma força que os raios de sol queimam a já pouco metalizada pintura azul do seu punto.
Ao contrário do que se passa em muitos dos outros módulos que compõem aquela enorme massa metálica, ali não existe ansiedade pelo jantar que tem de estar pronto. Pela roupa que se tem de estender. Pelos miudos que se tem de deitar. Pela novela que não se pode perder.
João sabe que em casa nada o espera. Dentro das paredes já amareladas pelo tabaco, só o velho companheiro de jornada o aguarda. O seu velho gato persa. E para esse o tempo já passou para além do que devia. Outrora fora uma das poucas razões para alguma animação na sua casa. Hoje já nem se apercebia da sua entrada, de tal modo estava surdo e cego, agarrado à vida por um fio tão fino e desgastado que ameaçava romper a qualquer momento. Nem conseguia imaginar quando ele quebrasse e lhe levasse a sua única companhia. Nem ele seria capaz de arranjar qualquer outro animal para casa. A ligação ao seu fiel, hoje velho companheiro, era de tal modo forte que sentiria ser uma enorme traição permitir que alguem pudesse sequer ocupar o seu lugar.
Este nobre pensamento era intercalado por outros bem mais triviais, como se teria algo no frigorifico para poder preparar um jantar, ou que filme passaria hoje, num dos quatro canais de televisão a que tinha acesso, e que se constituiria no ponto alto da noite.
Que grande programa de fim de semana. No dia seguinte deixar-se-ia vegetar na cama até horas impróprias de poder dizer bom dia. Comeria uma taça de corn flakes com leite magro, junto com uma maçã de pele encarquilhada que foi resistindo durante a semana, na pequena fruteira de vidro colocada na minuscula mesa branca que enfeita a cozinha. De seguida vestiria o fato de treino de sempre, e com a barba por fazer seguiria a multidão, até uma qualquer grande meca de consumo, para abastecer dos mantimentos necessários, o seu refugio de todos os dias.
No percurso por entre os longos escaparates, repletos de latas de conserva todas elas seladas há meses mas garantindo ter dentro de si legumes tão frescos, como se tivessem sido colhidos nesse dia por um pequeno agricultor de provincia, duas vizinhas cruzam o seu caminho. Ambas passam a vida no café em frente ao prédio, uma delas está desempregada desde o dia em que pensou trabalhar e a outra foi reformada por já não se enquadrar na fotografia cheia de jovens bonitas e dinâmicas da sua ultima empresa. Ambas ocupavam grande parte do seu dia a criticar a vizinha da verruga e as suas escapadinhas carnais. Seria talvez o sinal da inveja. A outra era feia mas mesmo assim conseguia fazer aquilo que elas, embora até jeitosas, não tinham a coragem de fazer. De fazer ou de assumir. Que o que se faz dentro de quatro paredes, só pode ser sabido, se o contar quem dentro das quatro paredes esteve. A desempregada comenta a barba por fazer e a forma descuidada como saira envergando um fato de treino tão velho. Um vizinho tão distinto e bem sucedido como o do quinto andar, não deveria andar nestes propósitos em público. Um rapaz tão culto e com tantas responsabilidades. Ouvi dizer que é um autentico génio, trabalha numa grande empresa multinacional que sem ele não funcionaria, foi o que me disse o toino do talho. O bom senso da reformada logo veio ao de cima. É mesmo assim Albertina. Estes grandes senhores não são nada ligados a esses pequenos pormenores, eles ligam é as grandes coisas da vida. Só assim chegam a posições como as que ele tem. E o ar negligente de vestir e de se apresentar é normal. Quem todos os dias da semana é obrigado a estar sempre aprumado e de fato e gravata, não perde uma oportunidade de se livrar dessas amarras e tentar parecer tão normal como qualquer um de nós.
Para qualquer pessoa que aqui está, ele parece mais um pobre infeliz ás compras no centro, mas nós que o conhecemos, sabemos que ele não é nada disso.

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